Ponte Pedonale Sul Torrente São Pedro
universitá di aveiro, portogallo 1997-2002
A PONTE DAS BICICLETAS (*)
Parece que deveríamos chamar ria apenas às enseadas rasgadas na costa, provocadas, quer pelo abatimento de terras no litoral quer pela subida do nível do mar por sobre os vales fluviais, cientificamente, sendo impróprias, as designações mais comuns de Ria Formosa ou Ria de Aveiro. A ria de Aveiro seria mais propriamente uma laguna, já que tem origem na sedimentação transportada pelo Vouga que, no último milénio, terá transformado a baía onde desaguava na complexa bacia separada do mar por um enorme cordão de areia, entretanto fixado na actual configuração nos princípios do século XIX. A barra protege, assim, uma enorme bolsa líquida que separa fiadas de dunas na passagem para o terreno firme; Aveiro, a cidade, instala-se nessa fronteira, com os pequenos canais que se foram organizando a permitir o estabelecimento de uma vida normal.
Paisagisticamente, contudo, Aveiro torna-se mais extraordinária, quando se aproxima de esteiros ainda muito juntos, quase pantanosos, habitats de vida selvagem indiferente à constante industrialização, o terreno empapado a reflectir o sol na fina camada de água ocupada pelos quadrados rigorosos das salinas.
Uma série de planos urbanísticos estão na origem do actual campus da Universidade de Aveiro, uma obra bastante ambiciosa que tem vindo a coleccionar alguns objectos de arquitectura notáveis na recente produção portuguesa.
Primeiro, o Plano Integrado de Aveiro/Santiago, elaborado em 1973, pelo Fundo de Fomento da Habitação, propondo a mistura entre várias funções da cidade (nomeadamente a residencial e a universitária); depois, o Plano dos arquitectos Rebello de Andrade e Espírito Santo, de 1979, que estabeleceria a tipologia campus nos terrenos entre o Seminário e a aldeia de Santiago; finalmente, o Plano de revisão deste último, elaborado em 1987, por uma equipa do Centro de Estudos da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, liderada pelo arquitecto Nuno Portas, que fixaria o grosso do que vemos hoje construído, nomeadamente a grande alameda central, servida por uma arcada de peões, com os edifícios das diversas faculdades distribuídos em pente, ao longo dela, conjunto urbano que recebeu o prémio AICA/Ministério da Cultura relativo a 2000, culminando um tempo relativamente longo, ocupado no demorado e minucioso desenho de um espaço de estudo e trabalho de qualidade.
Chegada praticamente ao fim da sua "lotação", a zona de Santiago estende-se agora para Agra do Castro, mais a sul, separada da primeira pelo esteiro de S. Pedro, segundo um projecto de João Luís Carrilho da Graça (JLCG). Este arquitecto é também o autor de uma ponte que surge como ligação essencial entre as duas zonas do campus; é dela que falaremos hoje.
É uma ponte para peões e bicicletas (os automóveis darão uma volta diferente, atingindo o novo pólo a partir de uma antiga estrada a poente).
Aveiro é das cidades portuguesas que mais atenção tem dado às bicicletas. Compreende-se: totalmente plana e com uma população rejuvenescida a propósito da Universidade, pode hoje, seguramente, envolver-se com este meio de transporte de relativo conforto, mais que qualquer outra cidade no país. As bicicletas de utilização colectiva são já uma realidade interiorizada e bastantes os cidadãos que a elas (ou às suas próprias) recorrem. Necessário, é continuar a criar condições para que a sua utilização seja cada vez mais confortável e possível está neste caso a ponte sobre o esteiro de S. Pedro.
Trata-se de uma comprida estrutura (330 m), que atravessa o canal de água como uma viga em treliça, construída a partir de tubos metálicos e apoiada de 35 em 35 metros. A sua localização foi pensada para, visualmente, ficar orientada, a norte, com o depósito de água de Álvaro Siza (que marca a eixo da Alameda, o final do primeiro troço do campus), encontrando, perpendicularmente, a margem sul.
Os tubos são muito esbeltos (14 x 12,5 cm de secção) e a escolha de JLCG, ao pintá-los de preto, adelgaça-os ainda mais, dissolvendo a potente estrutura no mundo das sombras das árvores e canaviais que bordejam o esteiro a transpor. O jogo de triangulações é subtilmente variado, constituindo um ritmo que se sente no sereno desenvolvimento da peça mas que, à primeira vista, quase nos remete para um estrelado acidental e não sistematizado. Um tabuleiro, em betuminoso, é o piso, pontuado a meio por focos embutidos, de desenho industrial. Uma guarda metálica, também pintada de negro, marca-nos o interior do passadiço. Há ainda as ancoragens, já que, devido à diferença de cotas, a ponte se desfaz, no encontro com as margens, através de escadas forradas a pedra calcária. A atenção às bicicletas é pretexto, então, para duas rampas que, de um e do outro lado, colam a ponte ao terreno, segundo o ângulo de ataque mais apropriado. A norte, criando um braço lateral à ponte; a sul, de um modo mais complexo, já que o tabuleiro chega muito abaixo da cota de saída, com uma escada a virá-lo para nascente e a rampa, como uma sobra aposta, crescendo a poente, e ajudando as bicicletas a vencer o desnível.
São muito importantes do ponto de vista funcional, mas também formal, estas peças que, como próteses, se soltam, com andamentos próprios, da estrutura principal. São situações assimétricas a que o betão negro com que aparecem ao exterior confere um ar "neutro", de dispositivos utilitários e despretensiosos. Como se o arquitecto quisesse dizer: "uma ponte é uma ponte; são mais importantes as margens que liga, que o seu desenho". O desenho quase inexistente, traços negros finos, como carvão que atravessasse o negro castanho escuro manchado de poças e aves que picam misteriosa flora, na sombra luminosa da ria, é rigorosamente controlado, optimizado o cálculo matemático que lhe esteve na origem (Eng.º Adão da Fonseca/Universidade do Porto), para nos propor uma agradável travessia. Não sendo nostálgico, aquele anti-design, também quase nos faz imaginar cruzar a água através de uma improvável velha ponte metálica do tempo da extensão do caminho de ferro. É um desenho moderno, mas não lhe conseguimos precisar a origem, o tempo, a história. E para quem acompanha a obra de JLCG, reconhecerá, no tratamento interior das peças-apêndices que perturbam momentaneamente a certeza eficaz da ponte negra, temas, formas e pormenores na aplicação da pedra de revestimento, no modo de a rematar no topo dos muros, no desenho de encontro com o plano do pavimento, sinais recorrentes e experimentados noutras ocasiões, tornando luxuosos e confortáveis esses tabuleiros anexos, esses istmos pragmáticos que ligam o trajecto à terra.
A norte, o ritmo de triangulações parece em desacordo com o encaixe do tabuleiro lateral; há um desacerto de larguras que, propositadamente, cria um estrangulamento naquela união. E fica exposta uma espécie de bolsa de espera, de encontro, a propósito do afunilamento do circuito.
Na rampa oposta, já será a pendente a excepção que assinalará celebrará o momento de engaste, o momento de mudança. São vivências de cidade, um modo mais intenso de revelar as funções. Nesse lado, poderemos (ao mesmo tempo que, se subirmos, somos conduzidos à Agra do Castro), descer ao encontro do esteiro de S. Pedro: compreendemos, então, o percurso da ponte, os cabos que se arrumam sob o tabuleiro, os pilares também metálicos e compostos que aterram na terra pastosa da laguna. Vemos uma recta enorme e exacta; pensamos como é belo quando a arquitectura pode ser assim, simples, eficaz, intencional, útil, inteligente. Percebemos porque é que arquitectura não são "feitios", só colorido ou arrogante retórica. E ficamos optimistas, apesar do horror dos subúrbios de Aveiro, recortados ao fundo da cidade, já depois da água e das aves e da ponte, em primeiro plano.
(*) texto de Manuel Graça Dias in Expresso, Lisboa, 25/08/2001